Filemom 1:3: A Arquitetura da Salvação — Graça e Paz como Fundamento da Comunidade Cristã
Comentário Bíblico
“3 Graça a vós e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.” Filemom 1:31.
1. INTRODUÇÃO
Ao abrirmos a epístola a Filemom, deparamo-nos com uma saudação que, para o leitor moderno, pode soar como uma formalidade piedosa, uma assinatura epistolar padrão do apóstolo Paulo. Contudo, a fórmula “Graça a vós e paz” é tudo, menos trivial. Para a mente teológica, este terceiro versículo não é um mero prelúdio; é o próprio evangelho em forma de bênção. Ele constitui a fundação sobre a qual toda a carta — com seu delicado e radical apelo à reconciliação — será construída. Esta saudação é a proclamação da ordem divina: a ação de Deus precede e possibilita a resposta humana.
Este versículo, portanto, embora breve, é de uma densidade doutrinária extraordinária. Para extrair sua riqueza, é imperativo que o analisemos em suas partes constituintes, examinando a ordem deliberada e a fonte declarada destas bênçãos. Desse modo, analisaremos, em primeiro lugar, a “Graça”; em seguida, a “Paz”; e, por fim, a fonte conjunta e soberana: “Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo”.
O objetivo principal desta análise teológica e exegética é demonstrar que a saudação paulina em Filemom 1:3 não é um costume, mas uma confissão. Evidenciaremos que a “graça” é o favor imerecido de Deus que inicia a salvação; que a “paz” é o estado de reconciliação completa que resulta dessa graça; e que a origem conjunta no Pai e no Filho estabelece a divindade de Cristo e a base trinitária de nossa redenção. Esta fórmula é a premissa teológica para o perdão que Paulo solicitará a Filemom.
2. “GRAÇA A VÓS…”: O FUNDAMENTO DA AÇÃO DIVINA
A primeira palavra da bênção é “Graça“, do grego charis. No mundo secular, charis podia significar charme, favor ou boa vontade. Contudo, nas mãos de Paulo, o termo é batizado em águas teológicas profundas e se torna a palavra-chave para o ato redentor de Deus. Graça não é apenas a bondade de Deus; é Seu favor ativo, soberano e absolutamente imerecido, concedido a pecadores que mereciam o contrário. É o motor da salvação, a causa primária de tudo o que Deus faz por nós. Não é uma resposta à nossa dignidade, mas a fonte dela.
Ao iniciar sua carta com “Graça“, Paulo estabelece imediatamente o terreno comum que ele, Timóteo, Filemom, Áfia, Arquipo e, crucialmente, Onésimo agora compartilham. Todos são destinatários da mesma charis. Esta não é uma manobra retórica; é um lembrete teológico fundamental. Paulo pedirá a Filemom que estenda a Onésimo um favor imerecido, uma forma de graça. Ele pode fazer esse pedido precisamente porque a própria identidade de Filemom como cristão está alicerçada na graça que ele mesmo recebeu. A graça de Deus para conosco é o modelo e o poder para a nossa graça para com os outros.
Ademais, as Escrituras afirmam consistentemente a primazia da graça. Paulo declara em Efésios 2:8-9: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie”. A graça é a antítese do mérito. É o que nos impede de nos orgulharmos e nos compele à adoração humilde.
Todo crente, portanto, deve compreender que sua vida inteira se desenvolve sob a rubrica da graça. Nossas igrejas não devem ser tribunais de mérito, mas hospitais de graça, onde o favor de Deus é celebrado e distribuído. Viver da graça significa reconhecer que não temos direito a nada, mas recebemos tudo em Cristo, o que nos liberta para perdoar e acolher os outros sem calcular seus débitos.
3. “…E PAZ”: O RESULTADO DA RECONCILIAÇÃO DIVINA
Em seguida, Paulo deseja-lhes “paz“. A ordem é teologicamente inviolável: primeiro a graça, depois a paz. A paz não é a causa da nossa salvação, mas a sua consequência bendita. E esta não é a paz superficial do mundo — a mera ausência de conflito. Eirēnē carrega consigo toda a riqueza do conceito hebraico de Shalom, que denota plenitude, bem-estar, integridade e, acima de tudo, um estado de reconciliação. É a paz com Deus, que antes éramos Seus inimigos (Romanos 5:10).
Neste contexto, a “paz” tem uma dimensão dupla. É, primeiramente, a paz vertical: a hostilidade entre Deus e o homem foi encerrada na cruz de Cristo. Somente porque esta paz foi estabelecida pela graça, a paz horizontal — entre Filemom e Onésimo, entre judeu e gentio, entre mestre e escravo — torna-se possível. A paz que Paulo deseja à igreja na casa de Filemom é o poder divino que pode curar a fratura social e relacional causada pela fuga de Onésimo.
As Escrituras coroam Cristo como o nosso artífice da paz. “Mas agora, em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo. Porque ele é a nossa paz” (Efésios 2:13-14). Esta paz que “excede todo o entendimento” é o que deve governar, como um árbitro, nossos corações e nossas comunidades (Filipenses 4:7; Colossenses 3:15).
Portanto, a Igreja é chamada a ser uma comunidade de Shalom. Onde há conflito, amargura ou divisão, a graça de Deus não produziu ainda seu fruto perfeito, a paz. Somos chamados a ser pacificadores (Mateus 5:9), não por meio de técnicas de negociação humanas, mas pela aplicação do evangelho da graça que nos reconciliou primeiro com Deus.
4. “…DA PARTE DE DEUS NOSSO PAI, E DO SENHOR JESUS CRISTO”: A FONTE SOBERANA E CONJUNTA
Finalmente, Paulo identifica a origem inesgotável destas bênçãos. A gramática aqui é de uma importância teológica monumental. A única preposição “da parte de” (apo) governa ambas as Pessoas divinas: “Deus nosso Pai” e “o Senhor Jesus Cristo“. Paulo não diz “da parte de Deus e da parte de Jesus“. Ele os une em uma única fonte. Este é um dos testemunhos mais sutis e, ainda assim, mais poderosos da divindade de Cristo no Novo Testamento. Ele coloca Jesus em pé de igualdade com o Pai como co-outorgante das bênçãos redentoras fundamentais.
Esta construção teológica tem implicações diretas para a autoridade da carta. A graça e a paz que Paulo invoca não são meros votos de boa sorte; são realidades divinas que emanam do próprio trono de Deus. Ao identificar a fonte, Paulo lembra a Filemom que ele vive, como todos os crentes, sob o senhorio conjunto e harmonioso do Pai e do Filho. A obediência ao apelo apostólico não será uma concessão a Paulo, mas uma resposta coerente à soberania do Senhor Jesus Cristo.
Esta fórmula cristológica permeia as saudações de Paulo (cf. Romanos 1:7; 1 Coríntios 1:3; Gálatas 1:3), servindo como uma mini-confissão de fé no início de cada carta. Ela ecoa a verdade declarada por Jesus: “Eu e o Pai somos um” (João 10:30) e a afirmação de que ninguém pode vir ao Pai senão por meio d’Ele (João 14:6).
A nossa salvação está segura porque sua fonte não é humana, mas divina. Não podemos tentar receber graça e paz do Pai contornando o Filho. Toda a nossa vida de oração, adoração e obediência é dirigida ao Pai através do Senhor Jesus Cristo, o único mediador. Esta verdade deve proteger a Igreja de qualquer cristologia diminuída e ancorá-la na realidade da Trindade.
5. CONCLUSÃO
Em suma, a análise teológica e exegética de Filemom 1:3 eleva uma saudação aparentemente comum a uma declaração fundamental do evangelho. Aprendemos que a vida cristã é iniciada exclusivamente pelo favor imerecido de Deus (a Graça). O resultado dessa iniciativa divina é uma reconciliação completa e integral (a Paz). E ambas as realidades fluem inseparavelmente de uma única fonte divina: Deus Pai e o Senhor Jesus Cristo, numa afirmação poderosa de Sua igualdade e unidade.
Que esta profunda verdade nos transforme. Que nunca tratemos a “graça e a paz” como um jargão vazio, mas como a própria essência da nossa existência. Portanto, que, como Filemom, sejamos tão esmagados pela graça que recebemos e tão seguros na paz que desfrutamos, que nos tornemos canais generosos de graça e paz para um mundo quebrado e conflituoso. Pois é nesta bênção que reside todo o poder para a reconciliação.
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