Comentário Bíblico
“8 Por isso, ainda que tenha em Cristo grande confiança para te mandar o que te convém,” Filemom 1:8
1. INTRODUÇÃO
Chegamos a um ponto de virada fundamental na epístola a Filemom. Após uma longa e calorosa introdução (vv. 1-7), repleta de afeto, gratidão e afirmação, o apóstolo Paulo agora transita para o coração de sua missão. O versículo 8 marca o início do seu apelo, mas o faz de uma maneira extraordinariamente complexa e pastoralmente sábia. Ele não inicia com o pedido em si, mas estabelecendo a base da sua autoridade para fazê-lo. Este versículo é a antessala da exortação, onde Paulo revela a autoridade que possui, apenas para, no versículo seguinte, escolher um caminho mais excelente.
Para desvendar a profundidade estratégica deste versículo, é imperativo que o analisemos em seus componentes sequenciais. Primeiro, a conjunção “Por isso“, que o conecta a tudo que foi dito anteriormente. Em seguida, a afirmação de sua prerrogativa: “ainda que tenha em Cristo grande confiança“. Depois, a natureza dessa prerrogativa: “para te mandar“. E, finalmente, o escopo desse comando: “o que te convém“.
O objetivo central desta análise exegética e teológica é demonstrar que Filemom 1:8 não é uma ameaça velada, mas uma declaração de autoridade legítima que Paulo estabelece com o propósito de, graciosamente, renunciar a ela. Argumentaremos que, ao afirmar seu direito apostólico de comandar, Paulo está, na verdade, elevando a decisão de Filemom: ele não quer uma obediência por compulsão, mas uma resposta que brote livremente do amor, tornando o ato de reconciliação mais significativo e um verdadeiro reflexo do evangelho.
2. “POR ISSO…”: A LIGAÇÃO LÓGICA E AFETIVA
O versículo começa com a conjunção “Por isso” (Dio), estabelecendo uma conexão direta e inquebrável com tudo o que foi dito nos versículos 4 a 7. É por causa do teu amor e da tua fé (v. 5), por causa da minha oração por ti (v. 6), e por causa do grande gozo e refrigério que teu amor já proporciona aos santos (v. 7), que eu agora me dirijo a ti.
Teologicamente, esta conexão é crucial. Paulo não faz seu apelo no vácuo. Mas o fundamenta no caráter cristão que ele já viu e celebrou em Filemom. Ele está, com efeito, dizendo: “Filemom, baseado na evidência da graça de Deus que já é tão abundante em sua vida, eu me sinto confiante para abordar este assunto contigo”. Ele apela à identidade de Filemom em Cristo, não à sua posição social.
Esta abordagem pastoral é um modelo para toda a liderança cristã. A confrontação ou o apelo se tornam muito mais eficazes quando precedidos por uma afirmação genuína e baseados na obra que Deus já está realizando na vida da pessoa. Paulo não está derrubando Filemom para depois reconstruí-lo; ele está construindo sobre o alicerce sólido que Deus já estabeleceu.
3. “…AINDA QUE TENHA EM CRISTO GRANDE CONFIANÇA…”
Aqui, Paulo afirma sua autoridade. A expressão “grande confiança” vem do grego, é uma palavra poderosa que significa “ousadia”, “franqueza”, “liberdade para falar abertamente”, especialmente diante de superiores. É o direito de um apóstolo, delegado por Cristo, de falar a verdade com autoridade. Esta não é arrogância pessoal, mas uma confiança que deriva de seu ofício.
A fonte e, ao mesmo tempo, o limite dessa autoridade é especificada: “em Cristo“. A autoridade de Paulo não é inerente a ele mesmo, mas é mediada, derivada e exercida sob o senhorio de Cristo e para os propósitos de Cristo. É “em Cristo” que ele e Filemom são irmãos, e é também “em Cristo” que Paulo tem o direito de guiar, exortar e, se necessário, comandar para o bem da Igreja e a glória do Evangelho.
As Escrituras mostram Paulo exercendo essa autoridade para a edificação da Igreja (cf. 2 Coríntios 10:8, “ainda que eu me glorie um pouco mais da nossa autoridade, a qual o Senhor nos deu para edificação, e não para vossa destruição, não me envergonharei”). A autoridade apostólica não é tirânica, mas pastoral e construtiva.
4. “…PARA TE MANDAR…”: A ESCOLHA DE RENUNCIAR AO DIREITO
O verbo “mandar“, do grego epitasso (επιτασσω), é um termo forte, frequentemente usado em contextos militares. Significa “dar uma ordem”, “comandar”, “prescrever”. Paulo está afirmando inequivocamente que, dentro de sua autoridade apostólica “em Cristo”, ele tem o direito de emitir uma ordem direta a Filemom.
Contudo, o uso deste termo forte é paradoxal, pois ele o emprega dentro de uma cláusula concessiva (“ainda que…”). Ao declarar que poderia comandar, ele implicitamente sinaliza que não o fará. Este é o coração de sua estratégia pastoral. Ele trata Filemom não como um soldado a quem se dá uma ordem, mas como um irmão a quem se persuade em amor. Ele renuncia ao seu direito de comandar para honrar a liberdade e a maturidade espiritual de Filemom.
Este padrão de renunciar a um direito por amor é um reflexo do próprio Cristo, que, “sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo” (cf. Filipenses 2:6-7). Paulo, como imitador de Cristo, aplica o mesmo princípio em seu relacionamento com Filemom. Ele se “esvazia” de sua prerrogativa de comando por um bem maior: uma resposta genuína e voluntária.
5. “…O QUE TE CONVÉM”: A NATUREZA OBJETIVA DO DEVER CRISTÃO
Finalmente, Paulo define o escopo do comando que ele poderia dar: “o que te convém“, do grego aneko (ανηκω). Este termo significa “o que é apropriado”, “o que é adequado”, “o que é um dever”. Isso é crucial. Paulo não está dizendo que poderia mandar em Filemom de forma arbitrária. Ele está dizendo que tem autoridade para ordenar a Filemom que faça aquilo que já é seu dever cristão.
Isso enquadra a recepção de Onésimo não como um favor pessoal a Paulo, mas como a conduta apropriada e adequada para um crente na posição de Filemom. Perdoar, reconciliar-se e receber Onésimo como um irmão é “o que convém” àquele cuja vida é definida pela fé em Cristo e pelo amor aos santos. A questão transcende o âmbito pessoal e se torna uma questão de consistência com o próprio evangelho.
Portanto, Paulo está desafiando Filemom a alinhar suas ações com sua identidade professa. Ele não está impondo uma nova lei, mas chamando-o a viver as implicações do evangelho da graça que ambos compartilham. O dever cristão não é um fardo externo, mas a expressão natural de quem nos tornamos em Cristo.
6. CONCLUSÃO
Em síntese, a análise de Filemom 1:8 revela uma manobra pastoral de profunda sabedoria. Paulo, de maneira estratégica, estabelece sua autoridade apostólica legítima “em Cristo”, afirmando seu direito de comandar a Filemom que cumpra seu dever cristão objetivo. Esta autoridade é logicamente conectada ao caráter piedoso que Filemom já demonstrou.
O propósito desta declaração, no entanto, é paradoxal. Ao articular claramente seu direito de comandar, Paulo o faz para, no versículo seguinte, graciosamente colocá-lo de lado. Ele opta pelo apelo em vez da ordem, pelo amor em vez da lei. Ao fazer isso, ele honra a agência de Filemom e lhe oferece a oportunidade de agir não por compulsão, mas por um coração transformado pelo evangelho. Ele não busca a conformidade, mas a transformação, tornando o ato de reconciliação um glorioso testemunho do poder da graça, livremente recebida e livremente estendida.
- Leia também: O Impacto do Amor que Edifica a Igreja Filemom 1.7
Pingback: A Persuasão do Amor: O Apelo de um Pai Espiritual em Cadeias - Palavra Forte de Deus